No mínimo para viver: ocupação em SC acolhe famílias em meio a divergências com poder público

Os integrantes da ocupação Anita Garibaldi, em Santa Catarina, enfrentam dificuldades para conseguir manter as 20 famílias abrigadas em um prédio público na Grande Florianópolis. Governo do Estado diz que tem “dificuldades de acessar o imóvel” da ocupação em SC.

Ocupação em SC - Bandeira vermelha no teto com a frase Ocupação Anita Garibaldi

Movimento ocupou prédio que estava abandonado em Florianópolis – Foto: Laura Machado/ND

Ocupação em SC abriga famílias em vulnerabilidade socioeconômica

Ao ND Mais a SAS-SC (Secretaria de Estado da Assistência Social, Mulher e Família) afirma que já esteve no prédio “para fazer o levantamento das famílias” e “conseguir uma solução que seja melhor para todas”.

No entanto, ainda segundo a secretaria, não é possível ter “acesso ao local” pois a “porta fica trancada com um cadeado”. Já a coordenação do movimento diz que sempre esteve aberta “para ouvir”.

Entenda o impasse

No dia 28 de junho, o CEDH (Conselho Estadual de Direitos Humanos), que é vinculado à SAS-SC, publicou uma resolução para que autoridades e gestores adotem medidas que eliminem as violações de direitos humanos na ocupação Anita Garibaldi.

Segundo a recomendação, há uma série de apontamentos a serem cumpridos, dentre eles a instalação de energia elétrica pela Celesc (Centrais Elétricas de Santa Catarina) para atender as famílias que estão no local.

Movimento cadastrou inicialmente 100 famílias, mas abriga atualmente apenas 20 – Foto: Laura Machado/ND

Outro ponto que consta na resolução é sobre a consulta ao CBMSC (Corpo de Bombeiros Militar) para apurar se ainda há interesse da corporação no imóvel e, além disso, que o Estado ceda o imóvel para fins de habitação.

A coordenadora da ocupação conta que uma comissão formada pela Defensoria Pública do Estado e outras entidades, incluindo o CBMSC, visitaram o prédio e que os bombeiros já haviam informado sobre o não interesse pelo imóvel, mas que a posição não foi “devidamente formalizada”.

A ocupação em SC fica localizada na rua Prefeito Dib Cherem, no bairro Capoeiras. Criada em 17 de setembro de 2021, a organização pertence ao MLB-SC (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas), integrado ao movimento nacional que existe há 25 anos.

O prédio em Florianópolis foi ocupado pelo movimento em um período crítico da pandemia causada pela covid-19. Os integrantes afirmam que, na época, as pessoas acolhidas ficaram desempregadas e, consequentemente, sem renda para conseguir pagar um aluguel e manter outras despesas básicas.

Manutenção dos ambientes internos é feita pelos moradores da ocupação – Foto: Laura Machado/ND

Movimento luta para que prédio vire ‘habitação’ planejada

Ao ND Mais, a psicóloga e coordenadora da ocupação Anita Garibaldi, Laís Chaud, conta a história da ocupação, que surgiu para ajudar as famílias que estão em déficit habitacional.

“As famílias estavam em um momento ainda mais precário para pagar o aluguel, para se alimentar e continuar tentando viver naquela situação. O movimento faz justamente esse trabalho, organizando as famílias sem teto”, diz Chaud.

  • Déficit habitacional é o termo utilizado para definir um número de famílias que não possuem moradia ou vivem em condições precárias.

Segundo dados divulgados em 2024 pela FJP (Fundação João Pinheiro) em parceria com a Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades, houve um aumento de aproximadamente 4,2% no total de déficit de domicílios no Brasil. A comparação leva em consideração o período de 2019 a 2022. No ano inicial, o país tinha 5.964.993 de domicílios em déficit.

O espaço em Florianópolis iniciou com 100 famílias cadastradas, no entanto, o máximo que a ocupação chegou a abrigar foi o total de 40 famílias. Atualmente, apenas 20 vivem no prédio e, para manter as condições básicas, elas promovem eventos beneficentes e recebem doações do público em geral.

“Trazemos os artistas da cidade para dentro da ocupação. Nossos apoios são de outros movimentos sociais, das pessoas que acreditam na causa. É literalmente com R$ 10 de cada pessoa que a gente vai conseguindo manter toda a estrutura do prédio”.

“Não queríamos precisar ocupar. Todas as famílias deveriam ter as moradias dignas e garantidas, mas essa não é a realidade” – Laís Chaud.

Paredes são cobertas com artes e ilustrações feitas por artistas locais – Foto: Laura Machado/ND

Atualmente, o movimento trabalha para realizar reparos no prédio, arrumar a energia elétrica, fazer a manutenção dos espaços e organização para acomodar as famílias de forma mais confortável.

“Trabalhar, ter um salário digno e não gastar tudo em aluguel, alimentação, parece bobo, né? Mas é o mínimo para conseguir viver. Moradia, acesso ao lazer, poder pagar as contas e ainda assim sustentar a família, isso sim é ter dignidade”, diz a coordenadora.

Para manter a organização e a segurança dos ocupantes, o movimento criou um estatuto interno com algumas regras básicas de convivência, que estão fixas nas paredes do prédio.

Regras do local incluem a proibição do uso de drogas (lícitas e ilícitas) e a participação dos moradores nas reuniões gerais – Foto: Laura Machado/ND

Chau relembra que, há cerca de um mês, o local teve o fornecimento de energia elétrica cortado. Sem o serviço básico, os moradores sofriam com banhos gelados nas baixas temperaturas e a impossibilidade de utilizar dispositivos eletrônicos. Foi necessário fazer uma denúncia para que a energia fosse restabelecida.

“Com a luz cortada, as pessoas perdiam a pouca comida que já conseguiam na raça, no suor. Companheiros que trabalham em aplicativos de transporte sem poder recarregar a bateria do celular para fazer as entregas. Ninguém vive”.

Integrantes do movimento dizem que falta de energia elétrica causou perda de mantimentos básicos – Foto: Laura Machado/ND

“Temos uma rede de solidariedade muito grande. Edredom, blusas e outras roupas de frio, conseguimos através dessa rede. Quando recebemos mais do que precisamos, fazemos doações para outras comunidades e famílias que também precisam”, completa a coordenadora.

Planos e sonhos

Raquel Santos Araújo, de 39 anos, mora na ocupação Anita Garibaldi há dois anos junto com os três filhos: dois meninos, um de 17 e outro de 12 anos, e uma menina de 14. Com um quadro de depressão e também por ser hipertensa, Raquel enfrenta dificuldades e até discriminação no mercado de trabalho.

“Já fiz três entrevistas de emprego, mas por ser gorda, eles dizem que não têm uniforme para o meu tamanho. Aí vai ficando, passando o tempo. Meus meninos se alimentam lá no projeto e na escola todos os dias, de segunda a sexta. Sábado e domingo eu me viro”, conta.

O projeto no qual ela se refere é o CCEA (Centro Cultural Escrava Anastácia), no bairro Balneário, região Continental de Florianópolis, que oferece oportunidade de ensino profissionalizante e acolhimento a jovens e adolescentes.

Natural do Estado do Maranhão, Raquel chegou em Santa Catarina com um emprego já garantido para cuidar de uma mulher em idade avançada na Capital. Após a morte da idosa, Raquel ficou desempregada e sem condições de pagar o aluguel.

Todo o sustento da família vem através da venda de panos de prato feitos à mão por ela. No movimento dos dedos, ela crocheta, um a um, os produtos que são vendidos por ela.

“O que a cidade oferece de bom para quem quer, eu desejo para os meus filhos e ensino eles a quererem. Eu não estou bem, mas querer… eu quero tanta coisa. Dou força para eles todo dia. Hoje mesmo eles foram conhecer a UFSC. Ela quer ser policial ou advogada, o menor quer ser advogado também e o mais velho quer ser juiz”.

Crianças e adolescentes que vivem no espaço são devidamente matriculados em instituições de ensino, segundo coordenação do movimento local – Foto: Laura Machado/ND

“Eu espero que, antes de fechar os meus olhos, consiga ver isso se realizar. O que eu puder fazer para ajudar, vou fazer. Onde puder encaixar eles, eu vou” – Raquel Araújo, moradora da ocupação Anita Garibaldi.

“Quando minha mãe morreu eu era muito pequena, não tive essa pessoa para sonhar comigo, porque a mãe sonha junto contigo. Essa sou eu, sonhando com eles”, diz a vendedora autônoma, se emocionando ao lembrar dos filhos.

Para ajudar os filhos, ela conta ainda que não os deixa com tempo livre para o ócio. Sempre que pode e quando consegue, matricula os três em atividades para preencher os períodos entre as aulas da escola e as ações no CCEA.

Raquel compartilha que, ao longo da vida, foi vítima de diferentes formas de abuso, incluindo o sexual, mas a consciência sobre o próprio corpo e o entendimento do que de fato tinha acontecido, só veio de fato quando ela se mudou para a ocupação.

“Aqui eles me ensinaram que o meu corpo é meu. Antes eu não entendia, para mim isso era normal, comum. Acontecia na minha casa, não tinha para onde correr. Hoje eu ensino para a minha filha o que é, e ensino o meu filho a respeitar”, desabafa.

Ocupação leva nome de Anita Garibaldi, revolucionária brasileira que nasceu em SC – Foto: Laura Machado/ND

Na ocupação, segundo a coordenadora Laís Chaud, as tarefas de limpeza e manutenção do espaço são divididas entre as famílias e todas participam, inclusive das reuniões que ocorrem semanalmente.

Famílias se revezam nas tarefas domésticas e de manutenção do espaço - Laura Machado/ND

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Famílias se revezam nas tarefas domésticas e de manutenção do espaço – Laura Machado/ND

Quadro mostra escala para revezamento das funções na portaria do prédio - Laura Machado/ND

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Quadro mostra escala para revezamento das funções na portaria do prédio – Laura Machado/ND

Planejamento técnico

Para o espaço, um projeto técnico feito pelos estudantes e docentes de arquitetura da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), liderado pelo professor Paolo Colosso, estruturou o plano que transforma o prédio onde as famílias vivem atualmente, em um habitacional com capacidade para abrigar até 90 famílias.

Chaud pontua que o espaço segue as especificações mínimas necessárias, de acordo com o Governo Federal, estando apto para virar um habitacional. As qualificações são:

  • Localização em área urbana consolidada;
  • Existência prévia de ao menos quatro sistemas de infraestrutura urbana;
  • Existência prévia de acesso a pelo menos dois equipamentos públicos de educação;
  • Existência prévia de acesso a equipamento público comunitário de saúde ou assistência social;
  • e existência prévia de acesso a pelo menos dois estabelecimentos de comércio e serviços.

Projeto contempla dormitórios, cozinha, banheiros, lavanderia e diversos espaços para as famílias – Foto: Laura Machado/ND

“O pedido das famílias da ocupação Anita Garibaldi é que o Estado olhe para os dois projetos que já apresentamos. O movimento está mais do que aberto para ouvir, esse é o nosso objetivo”, completa Laís Chaud.

O que diz o Governo de Santa Catarina

De acordo com a SAS-SC (Secretaria de Estado da Assistência Social, Mulher e Família), a ocupação “já é alvo de um processo que atualmente está tramitando no TJSC”.

Leia a nota enviada pela secretaria:

“A resolução foi publicada na sexta-feira, 28 [de junho], no DOE, pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos, que é vinculado à Secretaria de Estado da Assistência Social, Mulher e Família, mas que é um órgão autônomo em sua atuação.

Em relação à ocupação Anita Garibaldi, o Governo do Estado, por meio da SAS tem acompanhado o caso de perto e vê a situação com bastante preocupação.

Uma equipe técnica da SAS já esteve no local para realizar o levantamento das famílias que estão vivendo no imóvel, em busca de uma solução que garanta proteção da dignidade e dos direitos humanos, no entanto, os ocupantes não permitiram a entrada no local e se recusaram a fornecer a relação de famílias que hoje vivem na ocupação.

Diante da negativa, a Secretaria de Estado da Assistência Social, Mulher e Família também entrou em contato com a Assistência Social de Florianópolis em busca de informações sobre o atendimento das famílias, mas o órgão também relatou dificuldades de acessar o imóvel para fazer o atendimento das famílias.

Todas as tratativas e ações feitas em relação a ocupação Anita Garibaldi também já foram formalizadas ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina, que atualmente trata de um processo envolvendo o imóvel.

A SAS segue buscando a melhor solução para as famílias em situação de vulnerabilidade e evite a violação de direitos, especialmente das crianças e mulheres que hoje ocupam o prédio”.

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